Tormenta: Um filme Mineiro dos Anos 30

por José Tavares de Barros

(Um)

Cada filme pode ser analisado por meio de diversos cortes ou níveis de leitura. Em se tratando de um marco histórico como Tormenta, lançado em Belo Horizonte em 1931, com “scenário” e direção de Arthur Serra (1), a tendência natural seria a de avaliá-lo apenas como obra de pioneiros, realizada nas circunstâncias mais adversas, numa época e num país em que o mercado exibidor cinematográfico estava dominado pelos filmes estrangeiros. Surgiriam as questões clássicas sobre as origens da ideia da produção, as influências recebidas, a motivação que conseguia reunir equipes de inevitáveis amadores, essas peripécias das filmagens e, para terminar, o destino quase sempre trágico da cópia ou das poucas cópias que se aventuravam a percorrer o mundo inacessível das salas de projeção. E viria a necessidade dos depoimentos dos pioneiros, nem sempre muito precisos, ou o recurso às memórias ainda menos seguras dos seus descendentes. Fique bem claro que nossa intenção não é a de rejeitar essa metodologia, a única possível nos casos muito numerosos de cineastas cujos filmes foram devorados pelo tempo e pelo descaso. Mas, quando se dispõe de cópias preservadas na sua quase total integridade, como no caso presente, parece ser bem mais objetivo e funcional trabalhar sobre a realidade do próprio filme, encarando-o sob um conjunto de pontos de vista capazes de revelarem seus íntimos significados.

Uma cópia de Tormenta, cuja existência surpreendeu os participantes do 3º Encontro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro ( Belo Horizonte, 1973 ), foi doada pela família do falecido Igino Bonfioli à filmoteca do Departamento de Cinema da Escola de Belas Artes da UFMG, através de um termo datado de 30 de dezembro de 1975. Da sua parte, propunha-se a Universidade a cuidar da preservação das seis bobinas originais, procurando inclusive a sua imediata recuperação através da tiragem de cópias de segurança. Essas, além de substituir o material perecível de nitrato de celulose, serviriam para a indispensável divulgação da obra ao grande público. Vencidas as dificuldades normais, foram levantados os recursos necessários para a recuperação de Tormenta no laboratório especializado da Fundação Cinemateca Brasileira, em São Paulo (2). No momento, já existe um contratipo de segurança tirado da cópia original, tendo-se perdido apenas cerca de 60 metros da 4a bobina, irremediavelmente melados por decomposição química. Resta, no entanto, a esperança de que os negativos de uma das partes do filme, incorporados posteriormente ao acervo da UFMG, correspondam exatamente ao trecho perdido. De qualquer forma, os dois minutos que faltam não chegam a prejudicar a razoável compreensão da trama, tratando-se de uma cena ???? cujo desenvolvimento é facilmente previsível. Resta, ainda, a solução de pequenos problemas técnicos, como o da pouca duração do filme naqueles meios que o puderem apreciar devidamente: escolas, cineclubes, centros de pesquisa. Numa etapa posterior, pretende a UFMG organizar uma antologia crítica com a função de levar as imagens de Tormenta a um público mais amplo: o do novo mercado de curta-metragem. Dadas essas premissas, passemos à análise da obra na sua dimensão objetiva de produto fílmico.

(Dois)

O primeiro plano de leitura há de ser o da trama que se apresenta em Tormenta, carregada de símbolos pouco sutis, com traços que revelam uma mentalidade romântica, completamente alheia às ideias modernistas que se difundiam na época. Dominada pelo enredo, que chega ao espectador principalmente através dos letreiros, a imagem funciona às vezes como mera ilustração das ideias transmitidas pela palavra.

A primeira informação sobre um velho compositor, Jacques Porto, nos dá a ideia do estilo que dominara nos letreiros, revelador também das limitações culturais de seus autores: “Há vinte anos já, que vi o que era viver naquele recanto pacato para esquecer a dor da tremenda tragédia de sua vida, onde perdera a esposa que lhe deixara um ente querido, fructo de um grande Amor destruído ainda em flor, pelo nefasto vício do jogo” (3). O “ente querido” é o filho Daniel, caracterizado como espírito pragmático, às voltas com as suas emocionantes caçadas, pouco atento à partitura que o pai vai compondo: “Destino será o nome dessa grande peça, emanada aqui destes velhos miolos”.

A segunda situação do filme introduz um elemento propriamente narrativo. Daniel (e agora vemos a intenção do roteirista de caracterizá-lo como caçador) afirmara “que fará as contas com quem me levar ao jogo”. Apesar disso, Jacques não consegue resistir aos apelos do vício, reforçados na passagem pelo botequim e na fartura das garrafas de cerveja na mesa do jogo. Mas Daniel surpreende os jogadores e os enfrenta. A bala que lhe destina o jogador principal, Júlio Guimarães, atinge Jacques e o derruba.

A terceira situação narra a morte de Jacques: “Em sua mente delirante pela aproximação da hora fatal, rodavam os compassos ainda melodiosos de sua composição ainda sem terminar…” Ele tem forças para se levantar do leito e compor os últimos acordes da partitura. Mas logo cai morto sobre o piano, mal tendo acabado de escrever o título de sua obra: Destino.

A quarta sequência corresponde à informação verbal sobre o ódio de Daniel, numa elipse de gosto nitidamente teatral. Definidos os sentimentos do rapaz (“os lamentos doridos dos sinos em sua alma como punhais agudos, e o desejo de vingança amargava-lhe os lábios agora sequiosos de vingança”) e insinuada a presença da morte pela superposição na imagem de uma trágica caveira, há o corte sugestivo para a presença de um delegado de polícia, que se confessa incapaz de descobrir crimes misteriosos que vêm ocorrendo na região. E ele ameaça Daniel: “Já sabia que você ia negar, mas um dia ainda o filo”. Ainda o recurso ao símbolo, desta vez com características nitidamente romanescas: “Numa noite em que os elementos ameaçavam coléricos, Tormenta da Natureza e Tormenta de sua Alma”.

Essa Tormenta simbólica se transformará, na sequência seguinte, em pretexto narrativo bem realista para introduzir a figura de Lúcia: pela primeira vez uma mulher atravessa o caminho de Daniel. Trata-se do bloco discursivo mais longo e, ao mesmo tempo, mais espontâneo e mais rico do filme. A moça, surpreendida pela tempestade iminente numa viagem de carro que fazia com o irmão Álvaro, pede refúgio na casa de Daniel, numa reviravolta cômoda mas bem pouco verossímil da trama. O rapaz os recebe, a princípio com desconfiança, logo depois com entusiasmo. Lúcia transforma os ambientes: “Não deu pouco trabalho: poeira e teia de aranha era um Deus nos acuda! Mas veja agora!” Nasce o amor, mas com complicações bem dignas de um folhetim da época ou, se quisermos, das novelas da TV que nos agridem hoje em dia. Para Lúcia existe um amor não correspondido: “Engana-se. O dono desta (aliança) não possuirá jamais meu coração”. No caso de Daniel surge a brutal paixão provocada em outra moça, Suzana, pela primitiva selvageria do rapaz. É interessante registrar aqui o recurso à citação bíblica, usado pelos autores com a intenção evidente de reforçar a credibilidade e sobretudo a seriedade do relato: “E a serpente, vendo inabalável o espírito de Ananias, procurou seduzir a Nathan, seu irmão mais novo”. O impasse se resolverá pela introdução, na trama, desse irmão, personagem que permanecerá pouco explicitada num fio narrativo secundário, claramente truncado. Resolvidos os impasses de ambos os lados, consolida-se o amor de Lúcia e Daniel nas caminhadas idílicas por lugares cheios de sombra e de paz, nos passeios de barco, na imaginação de uma nova casa que seria a deles, na alegria ingênua de uma festa na roça onde violeiros descobrem e executam a partitura do velho Jacques.

A sexta sequência introduz a tragédia definitiva. Daniel descobre que Lúcia pertence à família Guimarães, tem um ímpeto de ódio cego, apalpa o revólver, fica lívido como um cadáver. Na resposta de Lúcia, introduzem os autores um confronto bastante curioso: “Perdão Daniel! É por acaso um crime ser-se filha de um jogador?” A promessa feita diante do pai morto (o ódio de Filho orphão), e não o inevitável castigo pelos crimes cometidos pelo rapaz, é que será posta como obstáculo contra o “Amor doce e humano!” “Perdão meu pai, já não poderei mais vingá-lo”, dirá Daniel ao jogar no chão o punhal que mataria a amada. Acho bastante curioso esse posicionamento dos autores do enredo, na medida em que revela uma subordinação ao conceito de honra familiar a ser defendida a todo custo, encontrável em certa literatura do século passado e em determinados grupos sociais ainda contemporâneos.

A sequência final simplesmente desenvolve o clímax preparado pelas situações anteriores. Daniel resolve desaparecer, numa noite em que mais uma vez se precipita a Tormenta “lá fora em convulsões de urros roucos e gemidos dilacerantes”. É interessante notar a preocupação dos letreiros em marcar a presença, moralizadora, do irmão de Lúcia, que já não comparece na ação: “Deixo com vocês a casa…” Por outro lado, fica bastante simplificada a reação psicológica da moça ao conhecer a verdade: Daniel diz que perdeu sua sede de vingança, joga o revólver no chão e ela, simplesmente, deixa a cena. A retirada de Lúcia é visível pretexto narrativo para a chegada de Júlio e de Álvaro Guimarães, que deparam com um Daniel indefeso e facilmente o atingem com um tiro. Ao retornar Lúcia, o rapaz ainda terá forças para encenar o beijo que consagraria o amor, não tivesse ele condenado pela morte: “Com os lábios entumecidos (sic) pela dor, vendo a vida fugir-lhe pouco a pouco, ainda quis ele prosseguir na comedia da Vida, da sua vida de Tormenta, dando àquela a quem amava, mais alguns minutos de esperança, aceitando dos lábios dela aquelas palavras de um futuro dulcíssimo que já era impossível pela força do destino.”

Nossa exaustiva citação dos letreiros teve o propósito de oferecer ao leitor o prazer de saborear e de avaliar criticamente a manifestação, nos autores do scenário de Tormenta, um modo bastante curioso de encarar o Cinema. O projeto foi extremamente digno e sério, sem a menor dúvida. Mas confundia-se seriedade e necessidade de se sustentar a trama com rasgos de paixão e de tragédia exacerbados, usando-se a tortuosidade dos textos como substitutivo de uma inatingível, embora visivelmente desejada, qualidade literária. Pode-se concluir, sem receios, que os artesãos do acanhado cinema mineiro daqueles tempos eram obrigados a se valer dos poucos recursos culturais de que dispunham, não contando com o auxílio de quem se julgasse instalado em esferas intelectuais mais altas. Os erros elementares de sintaxe e de pontuação, que se notam nos letreiros, comprovam muito bem a afirmativa. Outra conclusão diz respeito ao final do filme. Por que não um final feliz, um happy-end à maneira dos filmes americanos que já invadiam o mercado exibidor da época? (4) Acredito que seja possível vislumbrar no desfecho do filme mais um indício da dignidade que poderia definir o projeto artístico dos autores. Parece que não se inspiravam eles num cinema convencional e estereotipado, mas nas propostas, certamente mais raras, dos filmes experimentais ou, pelo menos, naturalmente engajados que chegavam às telas mineiras. A tragédia, no caso, registra uma tomada de posição, mesmo que inconsciente. O estilo do filme, como veremos em seguida, sugere a presença de uma certa influência expressionista, aproximando-se a proposta de Tormenta, sob esse prisma, da experiência contemporânea do Ganga Bruta, de Humberto Mauro.

(Três)

Foi intencional a omissão, até esse ponto, do nome de Igino Bonfioli, universalmente citado como o autor principal de Tormenta. Nos créditos de abertura ele aparece como mero “photógrapho”, mas é fácil imaginar que, na consecução do projeto, coube-lhe a verdadeira parte do leão. Antes de mais nada, Bonfioli é o fotógrafo profissional, dono de um conceituado estúdio em Belo Horizonte (5), que, já em 1923, se interessa pela produção de filmes posados, tendo iniciado em torno de 1919 sua obra monumental de documentário. É fácil também definir essa incursão nos domínios pouco lucrativos do filme de ficção como uma espécie de veleidade de homem teimoso, um prolongamento natural da sua habilidade em restaurar e em construir equipamentos, em dominar todos os segredos da imagem fotográfica, desde os processos de revelação e copiagem às estimulantes possibilidades oferecidas pelas trucagens de laboratório (6). Os testemunhos de familiares confirmam também essa posição de Bonfioli como dono da ideia, como responsável pela captação e pela construção narrativa das imagens. Ocupado com esse plano técnico, é natural que ele tenha se valido da colaboração de outras pessoas, que julgava serem mais versadas nas artes da redação de scenário e na direção de atores.

De qualquer forma, dúvidas que ainda pairam poderiam ser dirimidas por meio do testemunho do ator Álvaro Santelmo, sempre disposto a recordar sua experiência de intérprete da personagem Daniel Porto, há quase quarenta anos. Limitemo-nos, por enquanto, à presença inegável de Igino Bonfioli atrás da câmera que filmou Tormenta.

Sua habilidade, aquilo que sem temor poderíamos chamar de sentido de Cinema, revela-se antes de mais nada no modo de descrever, com a câmera, os momentos de transição que se intercalam entre os blocos compactos da trama. Em primeiro lugar, a abertura do filme, com longos movimentos de câmera que passeiam por ruas de Belo Horizonte até enquadrarem a torre de uma igreja, com sinos que soarão em diversos momentos da narrativa: para conotarem a presença da morte, como símbolo religioso; para marcarem a passagem do tempo.

Encontramos um segundo exemplo da influência expressiva de Bonfioli no início da sequência que introduz a decadência de Daniel, após a morte do pai. A câmera, posta à altura do chão, enquadra apenas suas pernas, abaixo dos joelhos, e acompanha em panorâmica sua trajetória do portão externo da casa até a porta do alpendre. No plano seguinte, em contracampo, a caminhada continua a mostrar apenas as pernas do rapaz até o momento em que ele se joga sobre a poltrona da sala. O movimento agora é ascendente para enquadrar a personagem já sentada, numa atitude de aflição, acendendo um cigarro e passando as mãos pelos cabelos. Nada de extraordinário nessa elaboração fílmica de Bonfioli, obviamente. Mas, sem dúvida, uma intuição muito justa do potencial expressivo do Cinema e sua utilização adequada, apesar da precariedade dos recursos técnicos disponíveis. Na mesma linha, é ainda mais admirável a sequência que se insere um pouco adiante. O plano começa com um detalhe de placa, meio torta, onde se lê: “Daniel Porto”. A câmera inicia longa panorâmica, descrevendo o mourão de uma cerca, até o nível do chão. Segue depois para a esquerda, encontra a cancela e sobe por ela, parando quando enquadra uma caixa de correio, velha, num estado de abandono. O plano seguinte é uma caminhada subjetiva pelos já conhecidos assoalhos da sala, interrompida quando surge o velho piano coberto de poeira e de teias de aranha. No chão, papéis jogados, sujeira. Depois, o escurecimento da cena que vem completar a impressão de abandono que a Bonfioli interessava transmitir.

O domínio daquele que seria o código comum da linguagem fílmica, nos anos 30, manifesta-se também na habilidade de Bonfioli em montar, ou melhor, em decupar as cenas. Na base dessa arte, seu incrível sentido de escolha dos campos abarcados pela câmera de filmar. É a presença da sua vocação de documentarista, de fotógrafo profissional, dimensão que adquire notável ênfase se compararmos seu trabalho com o de cinegrafistas contemporâneos, como João Carriço, de Juiz de Fora. Em Bonfioli nunca há o enquadramento irregular, descuidado, nem a imagem fora de foco ou mal exposta.

Passando à analise da mencionada articulação dos planos, vejamos apenas um exemplo. Depois que Lúcia se instala na casa, a narrativa mostra-a em diversas situações como mulher preocupada com a limpeza. Na parede, um relógio parado. Lúcia entra no quadro, muito brejeira, toca numa cadeira desmontada. No plano seguinte, entra pela direita, levanta uma pilha de papéis velhos, mexe nuns panos que estão debaixo de uma mesinha, até sair pela esquerda. No próximo plano, Lúcia já aparece à direita do enquadramento, ao lado do piano: faz um gesto na direção da câmera, passa um dos dedos sobre a poeira espessa, quase sai pela direita do quadro. No momento seguinte, ela está de pé sobre uma cadeira: o plano mostra suas pernas, bem próximas, num toque de erotismo; depois, a câmera sobe por elas até descobrir Lúcia que acerta o relógio de parede. O discurso prossegue ainda em várias tomadas que continuam a descrever as ações de Lúcia num encadeamento de imagens muito fluente, denotando uma consciência perfeita de ritmo cinematográfico.

Outro setor da realização fílmica, talvez o mais privilegiado por Bonfioli, é o das trucagens. Aqui ele se revela como o técnico curioso, capaz de admirar e de imitar os truques que vê nos filmes aclamados pelo público. No fundo, o velho ranço do homem de província, disposto a provar que é capaz de fazer em Minas um trabalho digno do Cinema Mundial. É claro que os resultados ficam muito aquém da expectativa, do ponto de vista do domínio técnico. Mas é inegável a força de imaginação que o possuía. A um certo momento, Daniel manipula uma espingarda, numa ação inocente de bom caçador. Para introduzir a ideia de ódio e de tragédia, Bonfioli faz aparecer uma pequenina forma no centro do quadro, numa sobreimpressão que avança progressivamente sobre o espectador até definir-se como uma caveira ameaçadora. Num outro ponto, Daniel debate-se em remorsos pelos crimes cometidos. Ouve ruídos estranhos, desespera-se, ergue uma cadeira e quebra os vidros de uma janela. Pelo vão escuro, avança ameaçadoramente o rosto carrancudo do inimigo Júlio Guimarães. Mais elaborado tecnicamente, apesar de cair num nível de artificialismo ingênuo, é o recurso usado para sugerir a passagem do tempo. No plano, um calendário que se desfolha, um relógio com os ponteiros em disparada, uma ampulheta funcionando. Ao fundo, a figura minúscula de um homem que se movimenta, num efeito que revela uma verdadeira proeza de artesão. Também nessa linha das trucagens, há o uso bem mais funcional das fusões como elementos explicitadores da narrativa; é o caso da aspiração dos namorados por um futuro feliz, consubstanciada na casa nova que se sobrepõe ao barco no qual passeiam.

São evidentes as qualidades de Bonfioli na construção cinematográfica de Tormenta, sobrepondo-se inclusive às deficiências do roteiro e à postura amadorística dos atores. Elas o situam, com facilidade, como uma presença significativa no panorama do cinema brasileiro, autor de uma obra que só agora começa a ser realmente estudada (7).

(Quatro)

Está claro que o presente artigo não esgota a riqueza de aspectos contidos no filme. Seria preciso mencionar ainda a presença potencial da música, numa nítida intenção de incluir Tormenta no âmbito do Cinema sonoro, a novidade da época. Não se tem notícia precisa de que Bonfioli tivesse procurado a sonorização; mas a aspiração ansiosa por essa dimensão está presente em cada momento da narrativa. Já ficou claro que a partitura Destino constitui o leit-motiv do filme. Acrescente-se que o piano faz parte integrante da cenografia da casa de Daniel, sublinhando os momentos de tragédia e de felicidade (os violeiros na festa da roça). Na sequência final, a partitura cairá no chão e marcará a morte inevitável de Daniel. As experiências de Bonfioli na área da sonorização ótica da película só aparecerão nos anos seguintes, inclusive com a construção de equipamentos próprios, mas desde então já manifestava atitudes de homem atualizado diante dos progressos de uma técnica na qual se integrava plenamente.

Seria preciso mencionar ainda a deliciosa expressividade das viragens do filme. Realizado naturalmente em suporte preto e branco, a cópia existente foi submetida a colorações que tinham a função precisa de marcar o tom dramático das sequências, ou a de sugerir o efeito noturno, como é o caso das cenas da festa da roça. Assim, os tons vermelhos surgem para exprimir o amor ou o ódio, enquanto que a tonalidade verde expressa tranquilidade e paz. Mais um esforço do Bonfioli-fotógrafo no sentido de conseguir um lugar ao sol para seu filme, equiparando-o ao produto estrangeiro. Um esforço quase heróico para que Tormenta fosse exibido em Minas e no País inteiro, vencendo a concorrência. E gerasse um retorno do capital empatado, possibilitando a realização de novos filmes. Não há a menor dúvida de que tenham sido estes os sentimentos e os desejos do Igino Bonfioli de quarenta anos atrás. E essa postura, revista sob o prisma de quatro décadas de tentativas e de fracassos, transforma-o num homem muito sintonizado com a problemática de 1978, quando em Minas ainda se tenta descobrir os caminhos de um Cinema inexistente.

(Cinco)

Uma informação complementar se impõe. Os originais de Tormenta, junto com o contratipo e com a cópia de segurança em 35mm, retornaram ao laboratório da Fundação Cinemateca Brasileira para a tiragem de uma cópia definitiva, que incluirá: a multiplicação dos letreiros demasiado curtos, o que permitirá sua leitura normal; a inserção dos trechos encontrados após a execução dos primeiros serviços de copiagem, na medida em quem vierem a coincidir com o material deteriorado; a reconstituição, em película colorida, das viragens originais. Depois de vencidas dificuldades de ordem financeira e burocrática que, certamente, ainda hão de surgir, teremos chegado ao termo final de uma etapa de trabalho. Paradoxalmente, com um longo atraso, terá início a carreira de Tormenta: o filme será oferecido ao domínio público, como dizíamos no início do artigo. Nossa preocupação, que não evolve um bairrismo ingênuo, mas a convicção de que possuímos em Minas instrumentos mais adequados para avaliar e julgar o produto de nossos antepassados mineiros, é a de que surjam condições para uma abordagem sistemática e o mais possível completa desse material inédito. Que não paire sobre Minas o gosto meio amargo da prospecção e da descoberta não conduzidas à plenitude da pesquisa terminada.

NOTAS

(1) – Tormenta – ficha técnica – Juan Bal Piacenza Heitor de Assis apresentam este film da S.A.I.F.A. YARA – Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil – Scenário e direção de Arthur Serra – Protographia de Igino Bonfioli – Montagens de Pedro Piacenza – Atores: Álvaro Santelmo, pseudônimo de José Americano (Daniel), Carlos Silva (Jacques) Alda Rios (Lúcia), Carlos Neuron (Júlio Guimarães), Severino Peixoto (delegado), Victorio Nunes, pseudônimo de Vittorio Tocaffundo (Álvaro), C. Cavalcanti (Lauro) e Waldy Braga (Suzana), 1930/1931.

(2) – Trata-se de laboratório destinado basicamente a serviços de preservação e de recuperação de filmes, sem finalidades lucrativas. Foi montado com recursos de órgãos governamentais, destacando-se a participação do Ministério da Educação e Cultura, através do DAC, da FUNARTE e da EMBRAFILME. Propõe-se o laboratório a restaurar filmes antigos de todas as procedências, cobrando apenas o custo do material empregado desde que os originais e contratipos fiquem depositados em São Paulo.

(3) – Foram mantidas a grafia e a pontuação dos letreiros originais.

(4) – Um terreno muito fértil de pesquisa seria o da prospecção dos filmes exibidos nos cinemas de Belo Horizonte nos anos anteriores à produção de Tormenta, objetivando-se a determinação das eventuais influências sofridas por seus realizadores.

(5) – Uma pequena biofilmografia de Igino Bonfioli foi publicada no Boletim dos Pesquisadores do Cinema Brasileiro, 1976, setembro, nº 6, ano V, págs 18 a 21. Ele nasceu a 11 de dezembro de 1886 em Negrar, província de Verona, Itália, e morreu a 23 de maio de 1965, em Belo Horizonte.

(6) – Foram conservados alguns aparelhos usados e montados por Bonfioli. Acham-se armazenados no Departamento de Fotografia e Cinema da escola de Belas Artes da UFMG, enquanto se estuda um local adequado para sua exposição permanente ao público.

(7) – O Departamento de Fotografia e Cinema está ultimando a edição de um Boletim que conterá o roteiro de posteriori de Tormenta, além de outras informações sobre a obra de Bonfioli.


José Tavares de Barros (1936-2009) foi um dos fundadores do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro e um dos idealizadores da série Cadernos de Pesquisa. Professor, crítico e montador de cinema, foi vice-presidente mundial da OCIC e organizador do Prêmio Margarida de Prata da CNBB.

2 Comentários

  1. ernesto nazareno tocafundo disse:

    sou filho de Vittorio Tocafundo e fiquei com imensa expectativa de ler o texto acima . sabia ., por ouvir falar , que meu pai havia participado de filmes feitos por Higino Bonfiolli , que tive prazer em conhecer no estudio situado na rua Espirito Santo , esquina de av. Amazonas . É certo que não sabia o nome desta pelicula ” Tormenta ” , mas ouvi menção a um filme faroeste , que , se não me engano se chamou ” Entre as montanhas de Minas ” . Tinhamos uma fotografia de meu pai , vestido de cowboy . Não sei se poderia localiza – la . Meu pai , Vitorio , faleceu em 1967 . Tambem conheci Juan Bautista Piacenza e Pedro Piacenza . Nasci em 1942 . Será que poderei ver este filme restaurado ? um muito obrigado emocionado .

  2. ernesto nazareno tocafundo disse:

    li o texto acima com emoção e nostalgia . sou filho de Vittorio Tocafundo . tive o prazer de conhecer Higino Bonfiolli em seu estudio , à rua Espirito Santo com av. Amazonas e ela frequetava nossa casa , no barro preto . conheci , também , Juan Bautista Piacenza e Pedro Piacenza . Meu pai participou de outro filme de Higino Bonfiolli , chamado ” Entre as Monta nhas de Minas . Será que poderei ver ” Tormenta” restaurada ? muito obrigado .

Deixe sua Opinião

  • Please leave these two fields as-is:
  • Para proceder você precisa resolver essa simples conta, para nos ajudar na prevenção de SPAM.