Uma Missionária da Pesquisa

por Vladimir Carvalho

Brasília é a capital da república, referência mundial pelo seu moderno traçado urbano e genial arquitetura, tombada como patrimônio cultural da humanidade, e goza da fama de ter completado a chamada Marcha para o Oeste, que nesses quase cinquenta anos de existência ensejou significativas transformações no país com a sua presença no seu centro geográfico. Entretanto, no âmbito das artes e da cultura, a despeito de seu desenvolvimento socioeconômico, com uma população que já ultrapassou a casa dos dois milhões e meio de habitantes, a cidade ainda padece de lacunas que já deviam há muito ter sido superadas.

Duas delas – para dar exemplo – saltam aos olhos dos especialistas e dos seus habitantes: até hoje Brasília não tem a sua cinemateca, como acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo, a despeito de ter sido aqui que surgiu o primeiro curso regular de cinema, funcionando na UnB nos meados de 1960, sob a inspiração e direção do eminente e saudoso Paulo Emílio Salles Gomes. Como também não dispõe, a essa altura “do campeonato”, do seu museu de arte com projeto que de fato supra a demanda represada e que ficou só na saudade, desde quando o clarividente e operoso Mário Pedrosa propôs a criação de um original Museu da Civilização Brasileira, em tudo adequado ao seu perfil, ainda na época de sua inauguração.

Mesmo assim, no caso do cinema – e isso é o que nos interessa aqui – a cidade mantém com ele uma profunda ligação. Primeiro porque desde a sua construção Brasília foi registrada pelo cinema já a partir do dia em que foi lançada a sua pedra fundamental, cercada de enorme pelotão de cinegrafistas, sendo que Juscelino Kubitscheck manteve de plantão aqui uma equipe de filmagem encarregada de acompanhar passo a passo todo o evoluir da obra. Inaugurada Brasília, veio a sua universidade e com ela uma intensa cogitação da arte cinematográfica em torno das figuras de seus primeiros professores, o já citado Paulo Emílio, Nelson Pereira dos Santos, Jean-Claude Bernardet, entre outros que deram vida não só às tarefas didáticas como à própria prática do cinema, dando início a um ciclo de produção que, intermitente ou não, chegou aos nossos dias.

Hoje, com seu festival de cinema consolidado e intrinsecamente ligado ao desenvolvimento da produção brasileira, de que se tornou a principal vitrine, com seu Polo de Cinema e suas atuantes associações de classe, e um movimentado e rendoso circuito exibidor, Brasília gerou, nessa área, um alentado volume de registros de toda sorte, esparsos e sem sistemática catalogação, que poderia ter outro destino não fosse a indiferença dos setores que por definição têm a obrigação de preservá-lo.

É nesse contexto que surge quase como uma ave solitária a abnegada figura de Berê Bahia. Essa pesquisadora, cujo nome de pia é Berenice Rosalina da Silva, não teve como não adotar o carinhoso apelido que ganhou dos amigos e da sua origem baiana. Ele está possuído da mesma carga sinérgica que emana “da boa terra”, e Berê justifica plenamente a benção telúrica que recebeu do seu chão nativo: é a um só tempo delicada, tenaz e resistente como uma flor de cactus do seu sertão de Jacobina, onde nasceu. Ali sonhava com um mundo que só iria conhecer muito depois; frequentava assiduamente as sessões do cinema local e lia as colunas especializadas das revistas O Cruzeiro e Manchete, fazendo já seu álbum de recortes. Quando deu conta de si, véspera dos exames vestibulares, em janeiro de 1972, tinha arribado para Brasília, disposta como muitos dos seus a iniciar vida nova aqui. Já picada pelo vírus do cinema, trazia na bagagem uma admiração quase fanática pelo cinema de seu conterrâneo Glauber Rocha, sobretudo por causa das repetidas sessões de Deus e Diabo na Terra do Sol, que até hoje enfileira ao lado de Viridiana, de Luis Buñuel, e dos filmes de Fellini, paixões para toda a vida. Cursando Direito (havia de ter um ofício!) na Universidade do Distrito Federal, UDF, depois de largar as aulas de Pedagogia na UnB, Berê sobreviveu como professora primária e como revisora, entre outros bicos. Na faculdade, sempre antenada pelo cinema, ligou-se rápido aos grupos de estudantes que faziam oposição subterrânea ao regime militar. Guarda dessa fase a sua câmera super-8 e a lembrança de um curta inacabado. As ideias fervilhavam em sua cabeça e queria concretizá-la com a câmera que tinha à mão como qualquer jovem que se mirava em Glauber Rocha e sua divisa visionária.

As naturais dificuldades em produzir, entretanto, foram adiando para sempre o projeto de se tornar uma realizadora cinematográfica. Em seu lugar foi se insinuando e se instalando outro perfil mais conforme com as suas condições, o de cineclubista e de militante na política estudantil. Já a essa época enfrentava também o problema de saúde que a acometera desde os sete anos de idade e que se reflete até hoje na dificuldade de locomoção. Mesmo assim, valente como os de sua raça sertaneja, jamais enjeitou parada. Fundou com os colegas de turma o Cine Clube 3X4, na UDF, o primeiro de uma série que se espalhou por Brasília, sempre com sua assistência e participação. Um dia, melhor uma noite, no 3X4 o tempo fechou: a programação foi interrompida, a repressão baixou pesada numa sessão em que se exibia O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person; a luz do auditório foi cortada e a custo a cópia do filme foi salva e remetida de volta à distribuidora. O regime pesava sobre todos e ainda mais sobre aqueles que ousavam enfrentá-lo. Mas Berê e sua turma não se deixavam abater, e os prélios com a ditadura tinham sequência.

De uma outra feita, por ocasião do primeiro ano da morte de Bob Marley, o Cine Clube Gavião e a comunidade do Cruzeiro, de forte presença cultural em Brasília, resolveram prestar-lhe uma homenagem póstuma com um show e a exibição de filmes focalizando a figura do músico, com a colaboração da embaixada da África do Sul. Os cineclubistas, ao comando de Berê, bloquearam parte do trânsito na praça central do bairro. A polícia não se fez esperar, e foi um deus nos acuda. Na confusão, Berê ainda conseguiu lançar mão das bobinas indo literalmente se homiziar na vizinhança, enquanto outra parte dos cinéfilos foi dormir no xilindró. Na sua história também não faltaram os percalços e as tensões de um congresso pela reconstrução da UNE, realizado a duras penas em Piracicaba, São Paulo.

Mas o tempo foi passando e as relações com o cinema e a militância foram se tornando menos turbulentas. Berê acumulava experiência e cada vez mais se aproximava de sua vocação natural para a pesquisa. Sempre fora uma colecionadora inveterada, guardando tudo quanto era recorte de cinema, em especial no que se referia a Glauber Rocha, de quem mantém um alentado arquivo que não para de crescer. Depois o estudo, as mostras, a convivência com os bastidores do Festival de Brasília, as oficinas com especialistas, a leitura apaixonada dos textos de Paulo Emilio, as tarefas que aos poucos foram lhe sendo confiadas, completaram o quadro do seu engajamento definitivo na área da pesquisa. Um dos momentos definidores dessa sua opção, ainda que inconsciente, foi o encontro e a amizade com Maria do Rosário Caetano, na fase em que esta ensaiava seus primeiros passos na imprensa, com ela fundando o chamado CUCA – Movimento Candango de Dinamização Cultural, de existência um tanto meteórica, mas que marcou sobretudo o público jovem sempre interessado no cinema e na música.

Daí por diante, Berê vai entendendo o sentido missioneiro de sua vida em relação ao cinema. O seu amor pela atividade da pesquisa se torna uma espécie de compensação para aquela menina que se fez introspectiva, privada muitas vezes, por conta de sua saúde precária, dos folguedos com as outras crianças, e poupada em casa de tarefas mais exigentes. Sua vida passou a se confundir com sua atividade, que ela mesma, numa entrevista, classificou jocosa e modestamente de “catadora de papel”. Hoje em dia, se tivesse vingado a ideia sempre recorrente da criação de uma cinemateca em Brasília, certamente esse anjo bom da cultura não seria dispensada de dirigir um dos setores de documentação e pesquisa da entidade. Enquanto a cinemateca não vem, Berê segue em frente realizando a sua cruzada pela coleta de dados preciosos para a história do cinema em Brasília, pela conservação de sua memória, sem jamais perder o alto sentido de sua militância cultural, transformando-se mesmo na mais confiável fonte de informação sobre a existência de filmes, localização de datas, nomes e eventos. É simplesmente espantosa a sua capacidade de empreender e levar a cabo tarefas que resultam sempre na preservação da memória do cinema, seja o de Brasília como o de outros centros produtores mais importantes, porque a sua especialidade e a sua dedicação vão todas para o cinema brasileiro, sem nunca dispensar de ser espectadora das mais assíduas do cinema estrangeiro de expressão universal.

Essa lavra benfazeja vem desde os anos de 1980, quando dá início a um trabalho paralelo como programadora junto ao circuito alternativo, municiando órgãos públicos e privados, escolas, universidades, cineclubes, associações e sindicatos. Em meio às tarefas que vai acumulando – e cedendo mais uma vez ao viés da militância – ainda encontra tempo para assumir a vice-presidência da ABD-DF, ajudando os realizadores locais a organizarem a entidade. Incansável, atende apelo do seu velho amigo Guido Araújo e vai para Salvador dar uma mão na preparação da Jornada Internacional de Cinema. No mesmo passo, é conselheira e jurada em várias edições do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e de outros tantos, como os do Sesc, da Eletronorte e de Fortaleza. Nomeada pelo ministro Aluísio Pimenta, integra a comissão encarregada de detectar as causas do fechamento das salas de cinema em Brasília. Igualmente, integra a comissão organizadora da 2ª Jornada Nacional de Cineclubes. É jurada de cinema e vídeo no 2º e 3º Prêmio Luís Estevão de Cultura, que contempla a atividade artística da capital. Preocupada com a sorte e o estado precário em que se encontra o que foi o melhor cinema da cidade, funda com um grupo de cinéfilos a SACI – Sociedade de Amigos do Cinema Brasília, produzindo exaustivo dossiê da situação da sala em seu amplo conjunto arquitetônico, obra de Oscar Niemeyer.

Seu trabalho de formiguinha é notado pelos mais sensíveis e finalmente surge uma oportunidade de contar com os meios e condições para realizar parte do seu sonho. É convocada pelo Ministério da Cultura e vai coordenar como pesquisadora as atividades da filmoteca da Fundação do Cinema Brasileiro, em Brasília, que tem sob seu controle a preservação e circulação de significativo acervo de filmes. Cria ali a seção Vá e Veja, que logo disponibiliza para consulta do público vasto material como livros, jornais, revistas, cadernos de pesquisa e de crítica, cinejornais e guias de filmes, contabilizando-se perto de oito mil sinopses e fichas técnicas de filmes nacionais e estrangeiros. A sua sala no térreo do Minc transforma-se em referência na Esplanada dos Ministérios, verdadeiro caminho de formigas dos cinéfilos e pesquisadores de todos os níveis, ávidos por informação e contato com o cinema. Formam-se filas para o atendimento, tal é a demanda. Sobretudo depois que se implanta a Sala Paulo Emílio, resultante de convênio entre a Embrafilme, o governo do Distrito Federal e o Minc, que passa a oferecer movimentadas exibições e debates de filmes com a presença de diretores do Rio, de São Paulo e de toda parte. Infelizmente, a insensibilidade e a incúria de administrações desastrosas inviabilizaram a iniciativa que tinha tudo para ser a semeadura de um processo irreversível para a criação de uma cinemateca em Brasília. Quando Berê, por sua vez, teve de afastar-se por motivos de saúde, já não havia nada a fazer ali.

Mas a pérola de sua persistente atuação no meio cinematográfico estava por vir. Mesmo se deslocando com esforço, trabalha intensamente para a Secretaria de Cultura do DF em cima de projeto que já tinha em mente, desde meados dos anos 90, garimpando nos arquivos da antiga Fundação Cultural, revirando pastas, documentos e acervos fotográficos, costurando datas e dando sentido aos números e relatórios, para produzir o que seria a obra de referência fundamental para a história do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Para isso associa-se ao jornalista Celso Araújo, trabalhando a quatro mãos, numa parceria das mais felizes. A obra – 30 Anos de Cinema e Festival – A História do FBCB, 1965-1997 –, um vistoso volume de quase 500 páginas, tem caráter exaustivo, recuperando em todos os seus aspectos a memória do festival com um sem número de dados e informações criteriosamente pesquisados e “tabulados” que vão desde a história da criação do certame até o mais mínimo detalhe de fichas técnicas, datas, sinopses, de todos os filmes apresentados, com o natural destaque para os premiados, bem como relação das mostras paralelas, composição de júris, perfis dos autores etc. Escrito no melhor estilo jornalístico, leve e claro, o texto é absolutamente fiel aos acontecimentos, oferecendo uma contextualização impecável com uma linha do tempo que gera um clima para toda a trajetória do evento. Dando lugar a um paralelo com o que se passava no país, notadamente no que diz respeito às crises políticas, à censura e aos movimentos sociais, se rebatendo e afetando a vida cultural. Por tudo isso se transformou em fonte permanente de consulta quando o assunto é o Festival e suas circunstâncias. Enfim, uma verdadeira “bíblia”.

Depois dessa empreitada e da coordenação e produção do catálogo realizado para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – intitulado O Olhar da Igreja, com o histórico dos concorrentes e laureados do prêmio anual da entidade, a nossa pesquisadora mal teve tempo de respirar e já estava às volta com a elaboração de um livro que lhe é muito caro, e para o qual contou com o apoio da editora da Universidade de Brasília. Veio à luz, em 2003, Luz, Câmera, Mesa e Ação: O Cinema Brasileiro na Cozinha, um precioso “álbum” de gastronomia em que astuciosamente mistura da forma mais criativa os seus dotes culinários com saborosos textos e títulos de notáveis filmes do cinema brasileiro, resultando em deliciosa e insopitável leitura, tanto para os interessados na boa cozinha como para os amantes do cinema. De quebra, e tecendo o tempo com mãos de fada, concluiu extenso levantamento e publica a árvore genealógica de sua família. A dimensão desses feitos se torna ainda mais incrível se considerarmos as condições enfrentadas por sua autora, a começar pelas suas condições físicas. Quem não conhecer pessoalmente Berê Bahia ou quem nunca a tenha visto nas suas aparições na mídia não adivinhará naquela mulher morena e ainda jovem, de baixa estatura e riso simpático e solidário, que percorre arrimada à sua bengala os corredores da burocracia de Brasília, a força e o carisma que a conduz. Não imagina que naquele corpo frágil e claudicante existam latentes tanta energia e possibilidades de ação. Com um prontuário de treze cirurgias realizadas para continuar se locomovendo, mesmo com dificuldade, Berê é uma espécie de Frida Kahlo, a sofrida mas extraordinária pintora mexicana, notória também pelas batalhas que travou contra a doença. Elas pertencem à mesma linhagem de criaturas capazes de ir ao último ponto na resistência e superação de suas restrições físicas.

E Berenice Rosalina da Silva está muito longe de entregar-se a uma forçada aposentadoria: nos últimos meses trabalhou diuturnamente e tem pronto, recém-saindo do forno de sua inquietação, um ciclópico projeto. São cerca de 300 filmes localizados e minuciosamente fichados, inclusive com os respectivos endereços onde podem ser encontrados, e que constituem um soberbo panorama de obras que se ocupam direta ou indiretamente de Brasília, seu surgimento e sua influência, e que pretende exibir em grande gala durante as comemorações dos 50 anos de existência da capital brasileira, a se realizarem em 2010. É a chamada mostra “de arromba”, só faltando o apoio e o aval dos poderes públicos e privados para se materializar. Berê está partindo com certa antecedência para a luta, no ritmo conhecido e aparentemente lento do seu passo tardo, mas na verdade numa cadência só sua e que de longe supera, como sempre superou, a pasmaceira e a má vontade da burocracia. Ela mais uma vez haverá de subverter a ordem “natural” das coisas e chegará a tempo, porque “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.


Vladimir Carvalho é cineasta, professor, pesquisador e artista plástico. Autor de documentários como O País de São Saruê, Conterrâneos Velhos de Guerra e O Engenho de Zé Lins. Publicou o livro Cinema Candango, além dos roteiros de alguns de seus filmes. Criou e mantém em Brasília a Fundação Cinememória.

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