As Revoluções Clássicas de Escorel

por Carlos Alberto Mattos

A trilogia sobre as revoluções dos anos 30 destaca o rigor clássico do documentarista Eduardo Escorel e faz o elogio da preservação de imagens e depoimentos históricos.

Com o longa-metragem 35 – O Assalto ao Poder (2002), Eduardo Escorel deu prosseguimento a um projeto raro em se tratando de documentarismo histórico no Brasil. Um mesmo diretor, cercado dos mesmos principais colaboradores, dispõe-se a recontar a história das grandes sublevações do país. O filme é a conclusão de uma trilogia que se abriu em 1990, com 1930 – Tempo de Revolução, e prosseguiu em 1992, com 32 – A Guerra Civil, ambos médias-metragens. Escorel e seus colaboradores mais próximos prometem para o futuro mais três ou quatro opus, cobrindo o período do Estado Novo até a redemocratização do país a partir de 1985.

A produção do filme sobre a frustrada tentativa dos comunistas de tomarem o poder em 1935 teve início em 1994, mas ficou oito anos interrompida por falta de recursos.

Muita coisa além da imagem recorrente da águia do Palácio do Catete (uma alusão à expertise política de Getúlio) unifica os três documentários. Eles nasceram de um projeto do produtor Claudio Kahns e do professor de Ciências Políticas da USP André Singer, que viria depois a ser porta-voz do Presidente Lula. Todos têm roteiro e texto do jornalista Sergio Augusto e do próprio Escorel. Em comum, acima de tudo, a opção por uma linguagem de documentário expositivo clássico, em que a argumentação principal fica com o narrador em off (Edwin Luisi nos dois primeiros, Paulo Betti no último). É um modelo deixado para trás pelos documentaristas modernos, que se baseiam mais nas entrevistas, na captação direta de fatos ou numa espécie de “narrador pessoal” afetado pela vivência, a emoção ou mesmo o humor. O uso dessa “voz de Deus”, relativamente anódina, confere um aspecto didático aos filmes. O que, aliás, não é sem propósito.

A trilogia pretende, antes de tudo, clarear a visão do espectador sobre um conturbado período do qual só se conhecem versões – incompletas, manipuladas, desencontradas. O didatismo não está fora das pretensões de Escorel, embora isso não seja tomado como pretexto para a superficialidade e a pesquisa inconsistente. Os três filmes procuram um rigor de abordagem (imagino como Sérgio Augusto deve ter reprimido sua verve sardônica…) que se reflete na sobriedade do estilo.

Duas reflexões básicas atravessam a trilogia. Primeira: as revoluções dos anos 30 fracassaram por mal avaliar o potencial de adesão do povo e mesmo de militares de outros estados fora do foco detonador. Ou seja, foram fantasias desligadas das chamadas condições objetivas. Segunda: as quarteladas e levantes frustrados acabaram pavimentando o caminho para o recrudescimento do autoritarismo no Brasil, que culminaria com o Estado Novo e, mais adiante, o regime militar pós-64.

Em 1930 – Tempo de Revolução, uma produção da Videofilmes editada por João Jardim (futuro autor de Janela da Alma, Pro Dia Nascer Feliz, Lixo Extraordinário e Amor!), Escorel historia antecedentes como os movimentos operários da década de 1910 e as revoltas do Forte de Copacabana em 1922 e dos tenentes paulistas em 1924. Imagens preciosas dão conta da Exposição do Centenário da Independência, do Rio de Janeiro nos anos 20, da prisão do presidente Washington Luís e da campanha eleitoral de Arthur Bernardes (as primeiras filmagens do gênero no país). O texto contém uma pequena imprecisão: o filme Limite, de Mário Peixoto, não foi lançado em 1930, mas somente em maio de 1931.

Em termos de estrutura, 1930 dedica mais tempo e material aos antecedentes que à revolução propriamente dita. Esta chega de maneira sintética e abrupta no bloco final do documentário. Mas saímos do filme satisfeitos com a clarividência do professor Antonio Cândido, quando afirma que ali “o povo chegou finalmente à vida política, embora ainda tutelado pelo governo”.

Os mesmos versos de Carlos Drummond de Andrade fecham 1930 e abrem 1932 – A Guerra Civil: “Deus vela o sono e os sonhos dos brasileiros. Mas eles acordam e brigam de novo”. A briga, daquela vez, mobilizou cerca de 35.000 homens das tropas paulistas contra o governo de Vargas e obteve razoável repercussão popular, com base na nascente cultura de massa brasileira. O tom geral dos curtos depoimentos de historiadores e cientistas sociais recrutados por Escorel é de minimizar a importância dos separatistas paulistas no bojo da Revolução de 32. Mas tampouco se nega o sentimento, dominante em São Paulo, de que o estado carregava a reboque o resto do país.

Neste segundo momento da trilogia, o material de arquivo é submetido a um índice maior de manipulação (no bom sentido, sempre) e inclui cenas curiosas de soldados mineiros zombando dos ataques paulistas em pleno front. As narrações radiofônicas do locutor oficial do movimento, Cesar Ladeira, também ganham oportuno destaque. Dos três ensaios revolucionários, este é o que goza das maiores simpatias no âmbito do filme. O sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro recomenda às esquerdas que façam as pazes com a Revolução de 32. E o texto de Sérgio Augusto e Escorel conclui com uma exortação ao “sonho de um Brasil novo”. Que, infelizmente, resultaria apenas no Estado Novo.

Finalmente, 35 – Assalto ao Poder acabou contando com recursos e tempo para um tratamento ainda mais aprofundado que os dois filmes anteriores. Luís Carlos Prestes e o Partido Comunista do Brasil são os eixos em torno dos quais tudo se organiza. Mas há também depoimentos importantíssimos de Apolônio Carvalho, tenente revolucionário, do escritor Fernando Morais sobre Olga Benário e outras histórias de intolerância nos quadros do PCB, bem como de protagonistas da chamada Intentona Comunista (nome dado pelos militares para depreciar a sublevação).

Ali pela metade do documentário, instala-se um debate virtual entre historiadores sobre a importância da participação da Internacional Socialista no levante dos comunistas brasileiros. O jornalista William Waack, que sustenta no filme a opinião de que tudo fora planejado e executado desde Moscou, chegou a polemizar no jornal O Estado de S. Paulo, classificando o trabalho de Escorel como “tímido” e “hesitante”. O assunto, pelo que se vê, ainda está longe de um esclarecimento definitivo. A colaboração de Moscou, argumentam várias vozes no filme, foi mais simbólica e baseou-se em informes dos brasileiros, provavelmente traídos por excesso de otimismo. Mais uma vez, as fantasias teriam suplantado a análise da realidade. A adesão de outros estados nunca chegaria aos sublevados de Natal, Recife e Rio. O povo manteve-se à margem dos acontecimentos. O filme termina ao som de “Nada Além (de uma ilusão)”.

35 – Assalto ao Poder põe em destaque dois fatos chocantes. O governo Vargas teria inventado a versão de que oficiais foram assassinados covardemente pelos comunistas enquanto dormiam. De outro lado, membros do PCB decidiram e executaram o estrangulamento de Elza Fernandes, de apenas 16 anos, mulher de um dos próceres do próprio Partido, a título de queima de arquivo. A linha que separa heróis de fracassados é tênue e casual.

Como sempre, os materiais de arquivo fluem com propriedade e argúcia, ilustrando ou ampliando o sentido do que é dito e argumentado. Tome-se, por exemplo, o trecho de um cinejornal em que Getúlio aparece sorrindo para subitamente assumir a carranca de um pai autoritário. Ou as valiosas filmagens de congressos da Internacional Socialista, que mostram bem vivo o fervor utópico da “revolução mundial” enquanto Stálin, em suas declarações oficiais, a tratava como “um mal-entendido tragicômico”.

As revoluções de Eduardo Escorel são aulas de História e de documentarismo clássico. A enorme predominância de velhos filmes no tecido de sua argumentação serve, ainda, para atestar a importância da preservação de arquivos cinematográficos. Da mesma forma, o recurso a depoimentos colhidos por outros cineastas em várias épocas é um elogio ao registro incansável de testemunhos históricos. Mais direta e decisivamente que o ficcionista, o documentarista é sempre um herdeiro de todos os seus colegas e antecessores.


Carlos Alberto Mattos é crítico e pesquisador de cinema, autor de livros sobre os cineastas Walter Lima Jr., Eduardo Coutinho, Carla Camurati, Jorge Bodanzky, Maurice Capovilla e Vladimir Carvalho.

Um comentário

  1. kely aparecida truchinski terres disse:

    #aprendendomais

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