O Cinema na Amazônia & a Amazônia no Cinema

por Selda Vale da Costa e Antonio José da Costa

“Entre o pitoresco e o dramático, o cinema na Amazônia foi um ato de heroísmo”
Pedro Veriano, 2006

Contexto

Com a eclosão da borracha na economia mundial no final do século XIX e início do século XX, a Amazônia se insere num período de fausto, ostentação e contradições. Belém e Manaus são as duas capitais que viverão os efeitos desse momento.

Eldorado dos aventureiros, inferno verde dos naturalistas e paraíso perdido dos poetas, a Amazônia seria cantada e decantada, romântica e cientificamente, por viajantes e estudiosos, por artistas e políticos de todas as épocas. Foi louvada, amaldiçoada e chorada em verso e prosa. Percorrida, penetrada, pisada e mal interpretada por “quadrilhas” de turistas. A região amazônica e o seu grande rio também estiveram, desde o início, sob o foco e enfoque do novo engenho tecnológico desse momento – o cinema -, que buscou capturar segredos, mitos e almas de seus habitantes.

A chegada do cinematógrafo à Amazônia coincide com o apogeu do ciclo da borracha. As duas capitais haviam se transformado em grandes metrópoles, com uma elite de consumo requintado, embora de comportamento nem tanto, como atestam cronistas da época. Talvez por isso, em Belém como em Manaus, o cinema ao chegar em 29 de dezembro de 1896 e 11 de abril de 1897, respectivamente, não tivesse causado impacto nas cidades. O novo invento dos irmãos Lumière passou quase despercebido. Ao ser-lhe atribuído o status de “arte nobre”, fazendo-o penetrar pelos recém-inaugurados templos culturais das elites manauara e belenense – o Theatro Amazonas e o Theatro da Paz, respectivamente – o cinema desencontrou-se de seu público predileto, as camadas populares, que lotavam as praças e cafés dos centros urbanos para ver o maravilhoso aparelho das “figuras que se mexem”. O local escolhido, as deficiências técnicas e os preços proibitivos afastaram o grande público para outros centros de diversões mais atrativos e menos dispendiosos. A elite que foi aos dois teatros tampouco se agradou daquele novo divertimento.

A antiga Cidade da Barra ganhara os noticiários do velho mundo e era destaque nas páginas de conceituadas revistas europeias[1]. Falava-se de um novo Eldorado, que convidava a aventuras fantásticas. Manaus, pouco a pouco, enchia-se de uma massa de passantes que cruzavam, apressados, as novas avenidas surgidas com os recentes aterros dos igarapés. Bondes a vapor, rapidamente substituídos pelos modernos elétricos, desfilavam pelas novas pontes de ferro inglesas. Línguas estranhas cruzavam-se pelo novo serviço telefônico. Um armazém para embarque e desembarque não mais dava conta das centenas de passageiros e volumes de carga que entravam e saíam diariamente da cidade pelas dezesseis companhias de navegação a vapor.

Em 1897, Manaus contava, além do imponente e majestoso Teatro Amazonas, com alguns pequenos teatros, como o Éden, muitos centros de diversões, clubes carnavalescos e esportivos, associações litero-musicais e os novos clubes noturnos, alguns deles cabarés camuflados. Circos pululavam pelas amplas e arborizadas praças da cidade. O povo gostava de ir às corridas de touros no Coliseu Amazonense, ao carrossel de cavalinhos no Recreio Ajuricaba e aos arraiais no Pobre Diabo. Aos domingos, os passeios de bonde eram o divertimento de todas as famílias. (Daou, 2000)

A borracha havia transformado a Amazônia. Manaus, a aldeia decadente de 1850, desabrochara e transformara-se na efervescente metrópole dos trópicos. E para abrilhantar ainda mais as noites alegres da nova elite boêmia, a 16 de outubro de 1896 havia sido inaugurada a iluminação elétrica no centro da cidade, cuja luz parece ter demorado a sobrepor-se ao brilho da lua: “Nada podemos ainda dizer a respeito deste serviço, porque sendo de luar a noite de inauguração, pouco ou quase nenhuma diferença notamos entre a claridade que apresentava a luz elétrica nas ruas em que ela apareceu e a que ostentava a lua nas demais ruas onde a luz elétrica não chegou”. (Amazonas, 17.10.1896, p. 1).

No final da década de 90, Manaus era outra. Dos 3.640 habitantes em 1848, pulara para 45.000, em 1897. As rendas de exportação da borracha enchiam os cofres públicos e o governo se esmerava em criar as melhores condições para transformá-la em uma cidade moderna, o novo habitat do capital estrangeiro: mandou escritores e políticos como propagandistas à Europa, trouxe fotógrafos que registraram a cidade em álbuns que percorreram as capitais europeias, metamorfoseou-a aos gostos estrangeiros. Manaus despiu-se de suas vestes indígenas, abandonou sua água de moringa por água de Vichy, trocou perfumes de flores e raízes silvestres por sofisticados frasquinhos parisienses, desprezou seus aluás e o saboroso guaraná por bourbons franceses e pelo schopp alemão. Enfim, o cenário estava pronto para abrir o espaço à “modernidade”, que se instala, sem retorno.

A elite divertia-se: temporadas líricas no Teatro Amazonas, saraus artístico-musicais e etílicos no Club Internacional e no Ideal Club, jogos e bebidas no Hotel Casina, alta prostituição na Pensão da Mulata e em outros cabarés. Para o divertimento da plebe havia touradas, carrosséis, cabarés de última categoria, arraiais, passeios de bondes, circos e espetáculos teatrais em hotéis-pardieiros…

O fausto da borracha, com suas noites brilhantes e sons alegres, não era capaz, entretanto, de esconder a miséria e a fome que rondavam a periferia da cidade. Funcionários sem vencimentos, crimes, roubos, mendicância escancarada, crianças perambulando pelas ruas, o outro lado triste e sujo do rosto de Manaus vinha estampado nas páginas policiais dos jornais, enquanto na primeira folha louvava-se a “calma”, a “ordem” e a “tranqüilidade pública” da capital. (Dias, 1999).

Nesse clima de esplendor, riqueza e miséria, o cinema chegou a Manaus, tímida e desastrosamente. Com um simples anúncio na primeira página do jornal O Imparcial no dia 11 de abril de 1897, sua estreia deixou muito a desejar, conforme informa o mesmo jornal, no dia 13:

“Sábado tivemos no Teatro Amazonas uma exibição do Cinematographo. O aparelho devido a fato que ignoramos não trabalhou com perfeição, pelo que o seu exibidor não repetiu o divertimento no domingo.”

Quem foi o empresário, ambulante certamente, que trouxe o cinematógrafo? Que “photographias animadas” teriam composto o programa dessa primeira exibição? Por que não houve outras sessões? Que aparelho cinematográfico teria sido utilizado? Perguntas que os periódicos de 1896/97, exaustivamente folheados, não respondem satisfatoriamente.

Os ancestrais do cinematographo

A ausência de comentários nos jornais, a falta de entusiasmo em relação ao novo invento talvez possa ser explicada por se pensar tratar-se das mesmas “vistas”, “quadros dissolventes”, que desde 1857, ou antes mesmo, vinham aparecendo nos teatrinhos de Manaus.

Segundo o jornal Estrella do Amazonas, já em 1857 o “sr. Silva” teria aparecido com um cosmorama, aparelho que seria novamente apresentado em novembro e dezembro de 1862, de empresário desconhecido:

Novo Cosmorama com muitas bonitas vistas

A 500 Rs. a entrada

Quinta-feira, 20 de Novembro de 1862, na rua Formosa, casa onde morou o sr. Alferes Galvão, professor de música.

Vistas

Vista da Praça do Palácio e do Porto do Maranhão; Dita de Savóia no Inverno; Dita da Tomada e Incêndio de Sebastopol; Dita da Grande Cidade de Roma; Dita de uma caçada em Fontainebleau; Dita da retirada da caçada em dita; Dita da entrada de S. M. a rainha da Inglaterra em Paris; Dita de J. J. Rousseau dando uma lição de botânica a Ermeville.”

O Polyorama, um dos tantos ancestrais do cinematógrafo, esteve por Manaus em 1861, em agosto e setembro:

“O abaixo assinado comunica ao respeitável público que vai dar algumas representações de polyorama, as quais se dividirão em quatro, a saber: na 1ª, 2ª e 3ª noites, apresentará vistas novas e na 4ª repetirá todas aquelas, para que as famílias que não vierem a principio apreciem a todas.

Convida, pois, aos Exmos. Srs. chefes de família para que se dignem concorrer a este divertimento para, depois de concluídas as vistas, o abaixo assinado continuar as representações para o povo.

A casa destinada para este fim é n’uma das salas contíguas à casa comercial do Ilmo. Sr. Major Francisco Antonio Monteiro Tapajós.”

Estrella do Amazonas, 24. 08.1861, p. 4.

Em 1870, no dia 15 de fevereiro, estreou outro Polyorama, de F. Cardoso, no Teatro Phenix:

“Está aberta uma assinatura de cinco soirées de Polyorama sujeitas ao abatimento de 5% a favor dos assinantes. Cada soirée constará de 40 quadros que interessam à história, à mitologia, às cenas da vida no que esta pode oferecer de ridículo ao riso e à galhofa. A par da instrução, este gênero de divertimento proporciona uma distração honesta e decente. Todo o trabalho se opera sob os princípios gerais da ótica; e porque o teatro não oferece o espaço necessário à ação dos aparelhos, haverá todo o cuidado para conservar a ilusão aos espectadores. Os srs. que desejarem subscrever, tenham a bondade de fazê-lo à rua Brasileira, em casa do sr. Emílio Bastos. Manáos, 10 de fevereiro de 1870. F. Cardoso.”

Amazonas, 10.02.1870, p.2.

Em 1878, no Teatro Beneficente, houve a apresentação de “quadros dissolventes”, pelo sr. Loureiro, e números de “prestidigitação”, pelo Sr. Ramos (Amazonas, 29.03.1878). Os cosmoramas continuaram a aparecer por Manaus até 1901, em plena era do cinematógrafo.

Em 1897, houve ainda a apresentação de um novo invento que combinava luz, imagem, cor e som: o Vitascope, de Thomas A. Edison, cuja apresentação pública mundial havia sido no Koster & Bial’s Music-Hall, de Nova York, em 23 de abril de 1896. O Vitascope foi trazido pela Cia. de Variedades Edna & Wood, que se apresentou no Teatro Amazonas de 10 a 22 de agosto de 1897[2]. Entretanto, a experiência parece ter sido mais uma vez desastrosa:

“[...] por não serem ainda fixas, tremeram muito as vistas, e haver uma grande demora nas mudanças de um quadro para o seguinte, tornou-se uma cacetada. No Pará fizeram melhores experiências; não só eram fixas as figuras como também tinham as cores naturais.”

Amazonas, 19.08.1897, p. 3.

“O sr. Wood com esses aparelhos estraga completamente os seus espetáculos, pois só servem de cacetear os espectadores [...] O fonógrafo que anteontem funcionou traz-nos a lembrança de um instrumento, cujas vibrações parecem ser produzidas por meio de raspadelas.”

Amazonas, 24.08.1897, p. 3.

O cinema chegou a Manaus e desapareceu misteriosamente. Quem pensaria nessa altura que esse novo invento viria a tornar-se o soberano dos espetáculos, a quase suplantar o teatro, a música, os circos e as touradas?

Os vendedores de ilusões

O cinematographo só voltaria a iluminar as telas de Manaus em setembro de 1900, no Hotel América, considerado um bordel, e sem programação publicada nos jornais, apenas referindo-se a um aparelho do sr. Parente. Seria o Nicola Parente, o pioneiro do cinema no Pará? (Veriano, 1999; 2006). Mais uma vez, mereceu pouco crédito da incipiente crítica jornalística, ganhando pouco público, que preferia divertir-se no Polytheama, na Av. Eduardo Ribeiro, onde as corridas de cavalinhos, a banda de música e as bebidas tornavam alegres as noites manauaras.

Em 17 de março de 1901 surgiu pela primeira vez nos jornais um programa de cinema! Constava a sessão de 25 fitas, ou “quadros”, distribuídas em cinco “actos”, e o prazer do público tinha sua razão: eram os filmes de Georges Méliès, encantando com suas mágicas e trucagens. Era o verdadeiro cinema-espetáculo, opondo-se ao cinema-realidade, ou simples documentação do movimento humano. As vistas apresentadas nesse dia foram: Raio X, Amazonas guerreiras, Os dois banqueiros, Um mágico, Mudança extravagante, O homem canhão, A cigana pedinte, Amor interrompido, O pesadelo, O beijo acanhado, Primeira noite de noivado, Vagabundo mágico, Um pintor modelo, Um rapaz na árvore, Dança de fogo, Cavaleiro misterioso, Fausto e Margarida, Desgraça do ciclista, O homem de quatro cabeças, Cabritos amestrados, Prazo enganado, Três jacarés, Um gendarme roubado, As meninas acrobatas e Ensaios de dança. (Amazonas, 17.03.1901, p. 2).

“Essa falta de arte e de artistas, nesta boa Manaus, fazem-me ficar completamente doente…”, lamentava-se o “Zeca”, do jornal Amazonas, em 09 de maio de 1901. Puro exagero, já que Manaus vivia o auge do fausto. A reclamação do articulista referia-se, entretanto, aos artistas e à produção artística locais, realmente quase inexistentes. Manaus era um verdadeiro saloon, aberto noite e dia. No novo ambiente de cumplicidades políticas, de dubiedades morais, de consumo desenfreado, a cultura e a arte não podiam ter significado diferente. Arte e cultura amarradas ao gosto e moda da Europa. Tudo era importado: do feijão ao arroz, do vinho às roupas, das companhias teatrais à música e à literatura. A produção artística local parecia algo completamente impossível ao pensamento reinante e os que nela se aventuravam, ou copiavam mediocremente os autores estrangeiros ou incensavam os “feitos heróicos” dos governantes e sua “corte” de funcionários parasitas. Na área cinematográfica, as coisas foram um pouco diferentes.

Neste ano de 1901, ainda, Manaus conhece outro parente próximo do cinematógrafo, o Biographo de Edison. Provavelmente, tratava-se de um aparelho da American Biograph, concebido por Lauste e Dickson, que de 1901 a 1905 estaria apresentando-se também no Rio de Janeiro, no Cassino Nacional e na Maison Moderne (Araújo, 1985). Seja qual tenha sido o aparelho utilizado, aberto o caminho com os cinematógrafos anteriores, o público ficou satisfeito.

Durante todo o ano de 1902 não há referências nos jornais a qualquer empresário ambulante com seu cinematógrafo. As casas teatrais procuravam melhorar a sua aparência arquitetônica para receber condignamente as inúmeras companhias estrangeiras, pois o Teatro Amazonas já era insuficiente para acolher a todas.

Em dezembro de 1902, entretanto, chega a Imperial Companhia Japoneza Kudara, procedente de Belém, que trouxe como novidades a duração das fitas, 20 minutos, e os novos aparelhos, o projetor Molteni “L’Aster” e o Catoptricon de Farragut. Projeções elétricas com a máquina Molteni haviam sido realizadas no Rio de Janeiro em fevereiro de 1898, com imagens da guerra de Canudos (Araújo, 1985, p.41). A Cia. Kudara deu apenas cinco espetáculos e logo seguiu para o sul do país.

O ano de 1903 foi silencioso em relação ao cinema. Apenas, em novembro, a Companhia de Arte Ítalo-Brasileira, de Arlindo A. da Costa, vinda do Maranhão, (Moreira Neto, 1979), trouxe para o Teatro Amazonas as imagens ou figuras em movimento.

O cinema fala e canta!

Em 1904: finalmente o cinema falante! E quem o introduz é a Empresa Eduard Hervet, que iniciou sua turnê pelo Brasil apresentando-se no Teatro Amazonas, de 18 de março a 05 de abril, com o Cinematographo Fallante Lumière. Foi a primeira vez que os jornais fizeram referência explícita ao inventor do cinema. A Empresa Hervet tornar-se-ia a empresa ambulante melhor estruturada, retornando a Manaus por diversas vezes: 1906 (abril, novembro e dezembro), 1907 (janeiro, maio e junho), 1908 (junho a setembro, e dezembro) e 1909 (janeiro e fevereiro).

Tanta propaganda sobre o Cinematographo Fallante e nada do programa quando ele estreou, a 22 de março! Mas no dia 26, num sábado, é anunciado: “o artista parisiense Galipaux em uma cena de conversação telefônica”. E mais: A Exposição de Paris em 1900, Banho casual (cômica), A morte do aeronauta brasileiro Severo, Um carnaval em Nice, Robinson Crusoé, O binóculo d’avó, etc. O cinematógrafo falante voltará somente em abril de 1906, ainda com a Empresa Hervet e ainda no Teatro Amazonas. Em todos os seis espetáculos que a Empresa ofereceu há fitas cantadas por famosos artistas parisienses: 11 de abril, o cantor Mercadier, do Cassino de Paris, na canção “Bonsoir, madame la lune”; dia 14: “La femme est un jouet”, cantada por Mercadier; dia 15: “La Venus du Luxembourg”, por Polin; dia 17: “Selon la saison”, e dia 18, “Bonsoir, madame la lune”, cantadas por Mercadier, último espetáculo da temporada.

Antes que a Empresa Hervet retornasse a Manaus, em dezembro de 1906, outro cinematógrafo falante se apresentará, de 13 a 25 de novembro, no Polytheama, casa de diversões que foi alçada a teatro, na mesma avenida de Eduardo Ribeiro, canto com a rua 24 de Maio. São cantadas na tela: Fausto, A filha do regimento, Maxixe, Carmen, A balança automática, Ave-Maria de Gounod, Barbeiro de Sevilha, Duo de cornetins, Estudantina, Solo de violino, Aída, Mignon, Solo de ocarina, España, Rigoleto, Sinos de Corneville e 28 dias de Clarinha.

Estava introduzido, assim, esse gênero de filmes cantantes que o Brasil viria também a produzir e que percorreram parte da primeira década para emudecerem depois de 1914. No sul, as músicas dos filmes não vinham apenas através do fonógrafo, mas eram cantadas ao vivo, atrás do palco e da tela, por artistas famosos, proeza que não foi realizada em Manaus, visto a ausência, nos jornais e revistas, de qualquer referência a esse truque artístico.

Os palácios dos sonhos

1906 representou um marco divisor no espetáculo cinematográfico local. O cinema havia conquistado a cidade e os empresários começaram a perceber as vantagens financeiras do empreendimento, que se tornou um investimento de lucros fabulosos a partir da segunda década do século. As casas de exibição fixa serão uma realidade em 1907, com a inauguração do Casino-Teatro Julieta, que irá ocupar o espaço do Teatro Polytheama e do Teatro Amazonas.

A necessidade de um local permanente e apropriado à exibição cinematográfica em Manaus manifestou-se a partir de 1907. O monopólio da produção, distribuição e exibição, em 1909, criará as condições para o crescimento da indústria do cinema, com salas fixas de exibição.

Em Manaus, até cerca de 1910, o cinema passeou por hotéis e confeitarias, feiras e arraiais, circos e cafés-concertos, teatros de variedades e, por vezes, em pleno espaço aberto, nas praças públicas. É verdade que desde seu aparecimento instalou-se no Teatro Amazonas, que o acolheu até o fim do período ambulante. Entretanto, a partir de 1908, com a crise financeira que se aproximava a passos rápidos, o Teatro Amazonas já não suportaria o alto custo das grandes companhias estrangeiras, e apenas ocasionalmente abriria suas portas para receber uma ou outra empresa teatral nacional, muito raramente o cinema.

A inauguração do Casino Julieta, a 21 de maio de 1907, introduziu mudanças importantes na exibição cinematográfica. Construído como teatro, desejado como café-cantante, o Julieta acabou por transformar-se na primeira sala de projeção fixa da cidade, onde o cinema construiu seu ninho para não mais levantar vôo. Recinto amplo, com cerca de 1.500 lugares, o Julieta irá funcionar diariamente, só interrompendo seu movimento por ocasião das reformas arquitetônicas no prédio e da troca de empresários, principalmente em 1912, quando se transforma no Cinema-Theatro Alcazar e, em 1938, no amplamente conhecido e de saudosa memória, o querido Cine Guarany, derrubado em 1986. (Costa e Lobo, 1983).

A construção do Julieta estimulou o aparecimento de salas com programação contínua e permanente. O cinema que aí se instalou, em moldes empresariais modernos, acabou por aniquilar as empresas ambulantes. Dois nomes foram responsáveis pela renovação cinematográfica em Manaus nesse período: Carlos Alberto Toscano Batalha – com a Empresa Luso-Amazonense, gerenciou o Teatro Julieta e deu nova dinâmica aos espetáculos noturnos – e Raimundo Nonato da Silva Fontenelle. Este, em sociedade com seu irmão, criou a Empresa Fontenelle & Cia., em 1907, que se constituiu em verdadeiro truste da exibição cinematográfica até os anos 30, arrendando salas – Alcazar e Odeon – e construindo outras – Polytheama e Popular – que chegaram até os anos 80. De 1936 até 70, a Empresa Fontenelle dividiu seu império apenas com outra empresa, A. Bernardino & Cia Ltda.

A crise da borracha, com a baixa dos preços e a concorrência da Malásia, ainda não alterara o ritmo frenético da cidade. Novas casas de diversões foram aparecendo, dividindo com os cinemas os espetáculos noturnos. Em 1909, mais três salas fixas surgem: o Recreio Amazonense, o Cinema Avenida e o Teatro Alhambra.

O Teatro Alhambra, apesar de ostentar denominação já em desuso para uma sala cinematográfica, funcionou com todas as características de um moderno cinema, de dezembro de 1909 à metade de 1913. Exibiu filmes brasileiros e amazonenses e iniciou soirées infantis das 7 às 8 da noite.

Em 1912, apareceram quatro novas salas: o Cinema Rio Branco, o Polytheama, o Cinema Olympia e o Cinema Rio Negro. Em fevereiro de 1913, o Odeon., a “pérola” da Avenida, uma casa construída exclusivamente para cinema, pois nem palco possuía. Construção luxuosa, salões de espera artisticamente decorados, bares com buffet requintado, grandes orquestras, os novos cinemas são verdadeiros palácios dos sonhos! Destes, apenas o Julieta (Alcazar, depois Cine Guarany), o Polytheama e o Odeon conseguiram varar os tempos, bons e ruins, e chegar aos anos 70, gerenciados pela Empresa Fontenelle & Cia.

Na década de 20, além dos cinemas já consolidados, comercial e popularmente – Alcazar, Polytheama e Odeon – surgiram outras salas com presença marcante por longos anos, o Cine-Teatro Manaus, o Cine Popular e o Cine Glória. Em dezembro de 1921, criação dos padres salesianos, surge o primeiro cineclube da cidade, o Cine-Teatro Manaus, no Colégio Dom Bosco. Nos anos 40, o Cine Manaus é desativado, mas deixou o gosto pela sétima arte, pois nos anos 60 outro cineclube do colégio agitou a geração de jovens sob a direção de Márcio Souza, Djalma Limongi Batista e Felipe Lindoso.

O Cinema Popular, inaugurado em 1926, no Alto de Nazaré, foi o primeiro cinema fora do centro da cidade. O Popular chegou aos anos 70, transformou-se depois no Cine-Pop, exibindo filmes em 16 mm. Hoje é um prédio comercial. Em 1928, nova sala na periferia da cidade é criada, o Cine Glória, no bairro do mesmo nome. Tem projeção nos anos 50, quando exibe também filmes em 16mm. Fez concorrência ao Cine Íris, em 1929, no bairro de São Raimundo, que durou alguns meses. Nos anos 40, os padres holandeses da paróquia de São Raimundo arrendaram uma pequena sala da igreja à empresa exibidora A. Bernardino, que nela explorou o Cine Paroquial, por alguns anos. O número de cinemas em bairros foi crescendo no fim da década de 20. Apareceram, em 1928, o Ideal-Cine, no bairro dos Tócos (atual Aparecida), que fecha nos anos 70, o Cine Natureza, em 1927, e o Cine Amazonas, em 1929, ambos na Vila Municipal, com pouca duração.

A partir dos anos 40, novas salas são construídas, algumas luxuosas e que percorrem os anos; outras, mais simples e de pouca duração: o Cine Éden, em 1946, na rua Jônatas Pedrosa, ao lado da casa de Silvino Santos, que se transforma, nos anos 70, no belo Cine Veneza, e depois no Cine-Teatro Guarany, fechando em 1989. O Cine Vitória, em 1950, no bairro dos Educandos. Foi vendido em 1973 e transformado em supermercado. O Cine Ypiranga, em 1960, no bairro da Cachoeirinha. No final dos anos 70 era muito concorrido, visto os demais cinemas terem sido fechados. Em 1983 é vendido e atualmente é uma loja de eletrodomésticos. O Cine Palace, em 1966, no Boulevard Amazonas. Em junho de 1973 deixa de funcionar, é transformado em supermercado, hoje também fechado.

Em fins dos anos 80, pequenos empresários, cinéfilos apaixonados, criam várias salas que vão se fechando uma atrás da outra, não chegando ao novo milênio: Cinema 2 (depois Cine Cantinflas), Cinema Novo, CineQua Non, Cine Chaplin, Cine Oscarito, Cine Grande Otelo, Cine Carmem Miranda e Cine Renato Aragão. Surgem as pequenas salas em shopping centers. Hoje, são, ao todo, 32 salas de exibição em Manaus. O mesmo processo ocorreu em Belém, embora lá um movimento tenha conseguido a permanência do Cinema Olympia, o mais antigo do Brasil em funcionamento.

Primeiras produções

Nas primeiras décadas do século XX, a região foi percorrida por dezenas de exibidores ambulantes de empresas famosas como a Pathé-Frères e a Gaumont, que realizaram tomadas da selva e do cotidiano das cidades amazônicas, ao mesmo tempo em que estimularam o aparecimento de inúmeras salas fixas de projeção pelos rios do Acre, Roraima e Rondônia atuais. As filmagens por estrangeiros, membros de expedições e comissões científicas, culturais e econômicas, documentaram os trabalhos técnicos e captaram as primeiras imagens de povos indígenas, dos cursos dos grandes rios e das riquezas do hinterland amazônico.

Dentre esses pioneiros, encontramos, desde a década de 10, o major Thomaz Reis, integrante da Comissão Rondon e que, graças às imagens que captou em Mato Grosso e Rondônia, contribuiu decisivamente para uma melhor compreensão antropológica dos povos indígenas na região. Assim como ele, mas com características temáticas diferenciadas, aparecem ainda o espanhol Ramón de Baños, que registrou os principais acontecimentos políticos do estado paraense com sua produtora Pará Films, e o português Silvino Santos, cujas imagens do Amazonas fizeram ecoar pelo mundo afora os instantes de grandeza econômica pela qual passava Manaus, mas também deixou marcas sobre o universo natural e humano da vida do interior amazonense.

Nas três primeiras décadas, produtoras nacionais, como a Fan Films, de Líbero Luxardo e Alexandre Wulfes, realizam inúmeras filmagens na região, como A restauração do Pará e O círio de Nazaré no ano de 1934[3] e produzem inúmeros curtas-metragens, especificamente após a promulgação da lei de obrigatoriedade da exibição do complemento brasileiro nas sessões de cinema, a conhecida “lei dos 100 metros”, de 1932. (Ver Oliveira, 2004)

A produção amazonense tem início em outubro de 1907: Praça e igreja da Matriz, Praça de São Sebastião com a estátua e o Teatro, A procissão de N. S. de Conceição, Visita ao matadouro de Manáos, Obras da Manáos Harbour e A frente da intendência no dia da posse do Coronel Affonso de Carvalho. A produção foi significativa, se considerarmos as condições físicas, técnicas e culturais da região. De 1907, quando surgiram os anúncios das primeiras filmagens, até 1935, mais de vinte títulos, excluindo-se a produção de Silvino Santos e de estrangeiros, dão conta do objeto de interesse da câmera cinematográfica.

 A propaganda da região, seus rios, florestas, flora e fauna foram o objetivo das primeiras filmagens. Operadores da casa Raleigh & Robert, rivais de Pathé na França, vieram descobrir o rio das Amazonas, filmando, entre outros, De Belém a Manaus, A passagem da linha equatorial a bordo do vapor alemão Rio Negro e Uma viagem no Rio Amazonas, todos filmes naturais, exibidos em 1912.

Com a crise da borracha no mercado mundial, os empresários locais elaboraram projetos políticos e planos econômicos, e passaram, inclusive, a utilizar o cinema como meio de divulgação de seus interesses. Para isso, contaram com o apoio do governo de Alcântara Bacellar, que propôs, com empresários locais, em 1917, a criação de uma seção cinematográfica, a Amazônia Cine-Film, e contratou o pioneiro Silvino Santos como cinegrafista. A Amazônia Cine-Film transformou-se no porta-voz visual do governo e da classe empresarial ligada à Associação Comercial, da qual alguns sócios eram dirigentes. Elaborou a imagem de progresso e recuperação da economia da região em filmes de curta-metragem como O Horto Florestal, Festa da bandeira e Manaus e seus arredores.

O interesse da Amazônia Cine-Film, entretanto, era a realização de um longa-metragem que mostrasse “lá fora o que é este colosso amazônico em todos os seus pormenores e fazer a maior e melhor propaganda inteligente desta região”. (A Capital, 11.05.1918). O filme seria Amazonas, o Maior Rio do Mundo, idealizado e realizado por Silvino Santos, que levou dois anos percorrendo o território amazônico. O filme consumiu todo o capital da empresa e não chegou a ser exibido, pois os negativos foram roubados e levados para Londres, onde foram vendidos a empresas de turismo!

No rastro propagandista do governo seguiram as demais produções no Amazonas, tanto as da firma Asensi & Cia. como as de J. G. Araújo & Cia. Ltda. A primeira produziu o longa-metragem Ouro Branco, em 1918, trazendo o cinegrafista de Rondon, major Thomaz Reis, para filmar o Ji-Paraná e as imensas propriedades da empresa no rio Madeira. A firma J. G. Araújo, tendo Silvino Santos e Agesilau de Araújo como realizadores, documentou em mais de dez filmes as riquezas e potencialidades econômicas dos produtos extrativos e as possibilidades da região.

A propaganda foi o maior alvo do olhar cinematográfico amazonense ao ponto de praticamente impedir a realização de filmes de ficção. Mas estes existiram! Pouco expressivos e, ironicamente, também para propaganda ou “reclame” das produtoras cinematográficas, pois pretendiam mostrar a qualidade das imagens de suas máquinas e a habilidade técnica de seus operadores: Um Naufrágio à Força, Amores de Seu Romão com a sua Cara Metade (“film cômico amazonense de reclame…”), todos de 1916, mas sem a informação dos realizadores e das empresas que os produziram.

O gênero documentário prestou-se melhor aos interesses econômicos no Amazonas. A ficção exigia na época uma tradição de produção teatral e literária que não existia em Manaus. A região com seus encantos e mistérios parece ter sido por si só suficiente para alimentar a produção de filmes, sendo ela mesma uma ficção que, transposta para a tela, ampliava e desenvolvia seus mitos e ilusões. O desconhecido hinterland, os “exóticos” povos indígenas e o misterioso mundo selvagem eram capazes de criar no imaginário dos espectadores mundos de ilusões e fantasias, imagens surpreendentes, carregadas de magia e encantamento, que provocavam espanto e admiração, e levavam os espectadores a viajar por caminhos que a própria ficção não alcançava. Os filmes recriaram o mito do Eldorado e do Éden terrestre, ao mesmo tempo em que reforçavam imagens de um admirável mundo novo, um paraíso que se julgava perdido: “É aquele, certo, o novo Eden, se houve dois Edens na terra!… esse Eden existe e está até bem perto de nós… Esse paraíso terrestre fica situado no próprio território brasileiro e é o Amazonas!”, descobria, espantado e entusiasmado, o repórter de um jornal carioca, em 1923, após a exibição de No Paiz das Amazonas, de Silvino Santos.

Tal era a quantidade de imagens sobre o mundo interiorano amazônico que, ao ser exibido Manaus, Cidade Risonha, em 1926, produzido pelo jornal O Libertador, o repórter local, aliviado, comentava:

“Não é só jacarés e pirarucus, balateiros e seringueiros. É tudo que a civilização pode exigir, por mais exigente que ela seja. Repertório minucioso de tudo que Manaus tem de mais chic e útil, o que qualquer cidade modelo deve ou possa ter… o fausto de nossa elite bela … o foot-ball e o turf … Visto em qualquer parte do mundo, coloca-nos em relevo que deve ter a capital do Estado longínquo do extremo-norte, tão injustiçado pelos que o conhecem através de informações dos que chegam, contando aventuras e se dizendo ‘heróis’ por terem voltado sãos e salvos, como se fossem exploradores de ínvios desertos, povoados de feras…”.

A Peia, 16.05.1926.

Se a ficção não esteve nos objetivos dos empresários amazonenses, não escapou, entretanto, ao interesse dos produtores estrangeiros. A Amazônia e seu estranho mundo foram motivo de vários filmes realizados em estúdios norte-americanos: monstros pré-históricos, aventuras inacreditáveis, caçadas perigosas, formigas, aranhas e piranhas gigantes, índios canibais e estranhas pirâmides escondendo os tesouros do rei Salomão, e até ardentes romances, tiveram como cenário imaginário as terras tropicais ao norte do Brasil. O cinema foi o criador e divulgador dos mais loucos e absurdos mitos sobre a Amazônia.

Pioneirismo

Silvino Santos é considerado e reconhecido como o cineasta pioneiro do documentarismo no Amazonas. Nascido em Portugal em 1886, chegou a Belém em 1899, transferindo-se, em 1910, para Manaus. Começou trabalhando como fotógrafo, mas logo foi atraído pelo cinema ao ser convidado por Julio Cezar Arana, um dos maiores acionistas da Peruvian Amazon Rubber Company, acusado de promover massacres contra povos indígenas no rio Putumayo, região fronteiriça do Peru com o Brasil. Interessava a Arana produzir material comprobatório de sua defesa e que mostrasse a sua “verdade” e para isto prestava-se a novidade do cinema, pois mostrava a “realidade em movimento”. Silvino, ao aceitar o convite, não só estaria dando um passo decisivo na direção de sua trilha “profissional” mas também sentimental.

Primeiro, para filmar os interesses de Arana, foi enviado a Paris para aprender a utilizar a nova tecnologia, vindo a estagiar exatamente nos estúdios da Pathé-Frères e nos laboratórios dos irmãos Lumière. Segundo, porque, ao viajar para o Peru, conheceu a filha tutelada de Arana, Ana Maria Schermuly, por quem se apaixonou e com quem se casou em 1913. Silvino Santos filma os seringais de Arana e as populações indígenas que neles trabalhavam no rio Putumayo, e o filme se prestaria aos objetivos do seringalista caso não ocorresse um acidente com o navio que transportava os negativos que iam ser copiados nos Estados Unidos. O naufrágio põe fim à sua aventura peruana.

Transfere-se para Manaus, quando vai trabalhar com o comerciante Manoel Gonçalves, da Amazônia Cine Film, e realiza alguns documentários e o seu segundo longa-metragem inacabado, Amazonas, o Maior Rio do Mundo. Inacabado, porque novamente o azar se coloca no caminho de Silvino: os negativos são roubados pelo noivo da filha de um dos empresários da produção, Avelino Cardoso, deixando o cineasta em difícil situação financeira. O material cinematográfico da firma falida é arrematado pelo Comendador Joaquim Gonçalves de Araújo e este reorganiza a produção de cinema da época. Silvino Santos é chamado para trabalhar com ele e ali conhece o sucesso.

Em 1921 realiza No Paiz das Amazonas, filme de rara beleza fotográfica e originalmente preparado para ser lançado na Exposição Comemorativa do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro, no ano seguinte. No entanto, ele é exibido também no Cinema Pathé, do Boulevard des Italiens, em Paris, e nos principais centros europeus. No Rio de Janeiro, em 1922, Silvino filma a Exposição e, com esse material, produz Terra Encantada, cujos fragmentos hoje são capazes de indicar a beleza, o potencial e outros aspectos da capital federal. Em 1924/25 realizou No Rastro do Eldorado, documentário sobre a expedição de Alexander Hamilton Rice, onde foi efetuada a primeira tomada aérea no Brasil. Entre 1925 e 1927, acompanhando a família Araújo a Portugal, produziu Terra Portuguesa, focalizando aspectos daquele país.

Quando, nos anos 30, tanto a atividade comercial como a de produção cinematográfica começaram a definhar, Silvino fazia apenas curtas-metragens sobre aspectos de interesse da família Araújo e da sociedade manauara, alguns deles exibidos na Fábrica de Cerveja e Gelo de Miranda Corrêa e Cia., para onde afluía a elite da sociedade amazonense. Depois de toda uma vida no Amazonas, ligado ao empresário J. G. Araújo, Silvino faleceu em Manaus, em 1970, após ser “redescoberto” por cineclubistas e homenageado no I Festival Norte de Cinema Brasileiro, em 1969.

Declínio

Com o surgimento da I Guerra na Europa, a Amazônia perde definitivamente o mercado internacional da borracha. O sonho havia acabado… As ilusões do Eldorado começam a ser encaixotadas com os bens salvos milagrosamente pelas famílias, que corriam para o cais, abandonando a região. Os que ficaram encolheram-se em sua impotência e se refugiaram no sonho do passado. O imaginário transformou-se no único espaço possível. A realidade cotidiana irreversivelmente seguiu seu curso, sem conseguir, entretanto, abafar totalmente as ilusões. As “atualidades cinematográficas” desenvolveram-se e o público, ansioso, acompanhava nas salas escuras dos cinemas o desenrolar dos acontecimentos. Dessa forma, as atenções se desviaram para fora da região. A partir de 1918, o cinema americano invade Manaus com seus filmes de bang-bang, entusiasmando plateias juvenis. Assim foi a década de 20, dominada pelo cinema americano e pelas superproduções da UFA, a poderosa produtora do Reich. Pouco espaço sobrou para a tímida produção local, exceção feita a No Paiz das Amazonas, de Silvino Santos, que teve sucesso local e nacional. Contudo, proliferaram as casas exibidoras.

O cinema em Manaus constituiu-se ao longo do período belle époque em elemento lúdico, empreendimento comercial e componente criador do imaginário coletivo. De simples divertimento, ingênuo e artesanal, os filmes transformaram-se gradativamente em mercadorias rendosas do poderoso comércio exibidor. Cafés, confeitarias e pequenos teatros de variedades cederam seus espaços a luxuosas salas, e o público foi transportado para o mundo encantado da tela.

Referências

ARAUJO, Vicente de Paula. A Bela Época do Cinema Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Perspectiva,

1985.

COSTA, Selda Vale da; LOBO, Narciso Júlio. Hoje Tem Guarany. São Paulo: Edições dos Autores, 1983.

COSTA, Selda Vale da; LOBO, Narciso Júlio. No Rastro de Silvino Santos. Manaus: Edições do Governo do Estado, 1987.

COSTA, Selda Vale da. Eldorado das Ilusões. Cinema e sociedade. Manaus:1897-1935. Manaus: EDUA, 1997.

COSTA, Selda Vale da. Visões da Amazônia. Catálogo de Mostra de Cinema e Vídeo (16 a 21 mar.1999). Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB, 1999, p.8-10.

COSTA, Selda Vale da et alli .O cinema na Amazônia. Revista Historia, Ciencias, Saúde, v.VI (Suplemento), Fiocruz, set. 2000, p.1073-1123.

COSTA, Selda Vale da; LOBO, Narciso Júlio. Cinema no Amazonas. Estudos Avançados, USP, 19 (53), jan/abr., 2005, p. 295-298.

DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto. Manaus -1890-1920. Manaus: Valer, 1999.

DAOU, Ana Maria. A Belle Époque Amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

LOBO, Narciso Júlio. A Tônica da Descontinuidade. Cinema e política na década de 60. Manaus: Edua, 1994.

MOREIRA NETO, Euclides Barbosa. Primórdios do Cinema em São Luís. São Luís: Cineclube Uirá/Univ. do Maranhão, 1977.

OLIVEIRA, Relivaldo Pinho de.(org). Cinema na Amazônia: textos sobre exibição, produção e filmes. Belém: UFPA/CNPq, 2004.

VERIANO, Pedro. Cinema no Tucupi. Belém: Secult, 1999.

VERIANO, Pedro. Fazendo Fitas. Memórias do cinema paraense. Belém: EDUFPA, 2006.

Notas

[1] [Destaca-se a] pitoresca povoação de Manáos, como vestígio da civilização que vai arroteando, dia a dia, tanto a espessura das florestas virgens como a aridez dos desertos. As longínquas regiões do Amazonas deixam de ser um mito, para serem simplesmente um vastíssimo campo aberto à indústria e à atividade do homem, abrindo o cofre dos seus tesouros opulentíssimos às crescentes necessidades da raça humana. (O Occidente, vol. II, Lisboa, l5.09.1879, p. 141).

[2] Em Belém, segundo Pedro Veriano (1999, 2006), o Vitascope chegou antes, em 29 de dezembro de 1896, no Theatro da Paz. O Biographo, outra invenção da Casa Edison, aparece por lá em outubro de 1903. Já o Cinematographo foi visto um pouco depois, em outubro de 1905.

[3] O Estado do Pará foi uma grande fonte dos filmes brasileiros exibidos em Manaus, o que atesta a rica produção paraense. Em 1929, A Conquista da Guyana Brasileira, produzido pela firma J. Estanilau & Cia., de Belém, recebeu em Manaus aplausos e recomendações para ser exibido em todos os colégios da capital.


Selda Vale da Costa é doutora em Antropologia, professora dos Programas de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia e de Sociologia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Coordenadora do Núcleo de Antropologia Visual – NAVI/UFAM e membro do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro.

Antonio José da Costa é jornalista, pesquisador do Núcleo de Antropologia Visual – NAVI/UFAM, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Amazonas e Coordenador do CineVídeo Tarumã/UFAM.

Deixe sua Opinião

  • Please leave these two fields as-is:
  • Para proceder você precisa resolver essa simples conta, para nos ajudar na prevenção de SPAM.